Aconteceu em 2009. Um grupo de moradores da Vila das Torres, zona de ocupaĂ§Ă£o das mais antigas de Curitiba, se deu conta da quantidade de livros encontrados no lixo recolhido pelos carrinheiros. Estima-se que a reciclagem ocupe 30% dos cerca de 8 mil habitantes do local. Foi essa gente, a seu modo, que reuniu o primeiro milheiro de tĂtulos, colocou numa sala emprestada por JosĂ© Francisco Sanches, o Baleia, chamou as crianças para ver e se tornou um assunto sem fronteiras. A Biblioteca ComunitĂ¡ria da Vila das Torres virou um sĂmbolo da cidade.
Pudera. Nesses tempos velozes em que muitos adiantaram que os livros de papel morreriam, os mesmos livros chamaram atenĂ§Ă£o para uma vila mais conhecida pelo noticiĂ¡rio policial. Comovidos, muitos levam cestas de romances e gibis atĂ© lĂ¡, engrossando o acervo que beira os 2,5 mil exemplares. A turma da Torres nĂ£o ficou imune ao acontecido. Fala com orgulho da biblioteca.
O espaço hoje funciona no Clube de MĂ£es e atraiu um voluntĂ¡rio tĂ£o inspirador quanto a biblioteca. Maicon Arruda, tem 21 anos, cursa Odontologia e gasta a maior parte do seu tempo na lida com os livros. É da vila. Calcula ter catalogado 1,5 mil tĂtulos, nas horas vagas, porque nas “horas gordas” o que faz mesmo Ă© ajudar a piazada da regiĂ£o nas lições de MatemĂ¡tica. TambĂ©m faz contaĂ§Ă£o de histĂ³rias. E dĂ¡ conselhos aos candidatos Ă literatura.
Ainda chegam livros do lixo – o que explica a excentricidade do acervo. EstĂ¡ ali uma ediĂ§Ă£o de O Capital, de Karl Marx, e a biografia de Obama, escrita por David Remnik. O que nĂ£o para nas estantes, contudo, Ă© a sĂ©rie CrepĂºsculo. E o tĂtulo do coraĂ§Ă£o de Maicon, O segredo, de Rhonda Byrne, que indica sempre que consultado pelos 30 usuĂ¡rios dia que atende. “Tem quem nĂ£o saiba ler. Com esses eu sento, abro um livro de imagem e vou conversando”, conta o jovem que lembra figuras como OtĂ¡vio JĂºnior, criador da “barracoteca” do Morro do AlemĂ£o, no Rio de Janeiro.
A Biblioteca ComunitĂ¡ria da Vila das Torres Ă© o exemplar mais famoso de um movimento informal que varre as cidades – o de culto aos espaços alternativos de leitura. SĂ£o incontĂ¡veis. HĂ¡ quem transforme saletas de prĂ©dios em espaços para ler – como o fotĂ³grafo Alberto Viana [assista vĂdeo]. E quem se ocupe de dividir todas as sobras de livros por lugares onde possam ser reaproveitadas. É o caso de Josiane Mayr Bibas, 52, e Ă‚ngela Marques Duarte, 51, hĂ¡ um ano Ă frente da Freguesia do Livro.
O projeto nasceu por acaso. Depois de 25 anos atuando como fonoaudiĂ³logas, as duas decidiram doar o acervo de livros infantis que guardavam nos consultĂ³rios. Desembarcaram com as caixas na Vila Zumbi, em Pinhais. “Tudo cheirozinho e arrumadinho”, como lembra Ă‚ngela. Foi quando descobriram que sabiam muito pouco sobre a realidade de lugares em que o livro Ă© um luxo, e que por isso mesmo, sem a aĂ§Ă£o dos mediadores, estavam muito prĂ³ximos do lixo. “A primeira experiĂªncia foi meio autofĂ¡gica”, diverte-se.
Ouvi-las falar da aventura que viveram Ă© uma escola. NĂ£o pararam mais de reunir exemplares descartados. “Um dia alguĂ©m dizia – ‘preciso abrir espaço nesta sala’ – e lĂ¡ estĂ¡vamos nĂ³s, carregando enciclopĂ©dias”, lembram. Josiane teve a ideia de oferecer na internet os livros sob sua custĂ³dia. Surpresa. Pensava que viria um pedido do Cajuru, mas recebeu um pedido de Xapuri, no Acre. “Viramos aquelas pessoas que ao saber que alguĂ©m vai viajar perguntamos se podem levar uma caixa de livros...”
NĂ£o pensem em caixas molambentas, com o fundo caindo. SĂ£o caixotes reciclados, com a logo da Freguesia. Os livros estĂ£o bem apanhados e selecionados, a depender do interesse do freguĂªs. Uma escola de inglĂªs adorou a seleta que a dupla preparou. Do contrĂ¡rio, os livros cairĂ£o em desgraça. AlguĂ©m quer Dale Carnegie de 30 anos atrĂ¡s? Elas tĂªm.
NĂ£o Ă© difĂcil prever que a iniciativa toma todas as tardes das idealizadoras. Marcam tudo num mapa. Calculam ter enviado caixas de livros a 50 lugares pelo menos. Planejam agora ir a feiras e praças e pousadas. E seguem com o atendimento ao Eco CidadĂ£o, nos quais instalaram velhas Barsas para carrinheiros. “Quem disse que nĂ£o servem mais?”, desafiam. Abandonada, sĂ³ a ideia de comprar um Ă´nibus, enchĂª-los de livros, levando Ă s Ăºltimas instĂ¢ncias o espĂrito de Thelma e Louise. De resto, nĂ£o lhes falta estrada. “Vamos a lugares que sequer imaginĂ¡vamos existir. A gente liga o GPS e pronto”, conta Josiane.
O poder pĂºblico parece ter passado por febre semelhante Ă da Freguesia. HĂ¡ dois anos, a FundaĂ§Ă£o Cultural de Curitiba criou 15 espaços inusitados de leitura. SĂ£o o que hĂ¡. Funcionam em terminais de Ă´nibus e nĂ£o raro em formatos que afugentam o pior inimigo do livro – a indiferença.
NĂ£o Ă© a Ăºnica qualidade do programa. Os acervos sĂ£o seletos. E os atendentes – alçados ao status de mediadores de leitura – estudam em universidade e sĂ£o leitores confessos. “Eu me sinto formando gente para o livro. Mesmo quando ouvi gritos de um passageiro horrorizado com o Caio Fernando Abreu”, lembra a acadĂªmica da Letras da UFPR Hellen Suzy Santos, 20. Ela atua no Espaço de Leitura do Terminal do Pinheirinho. InesquecĂvel? O morador de rua que lĂª para o pai na carreira de rodas. “Ele me vĂª e grita: ‘Ă” moça da leitura’. Quer mais?” (GP)